terça-feira, 29 de março de 2011

REGIÕES CULTURAIS FLUMINENSES: DESAFIOS E OPORTUNIDADES



O fato de em 2010 a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro (SEC) ter realizado uma série de encontros no interior, discutindo uma proposta de planejamento para a cultura fluminense levando em conta sua territorialidade, determinou um avanço em termos de políticas públicas no estado.  Isto porque o efeito imediato da proposta foi o da descentralização das nossas atenções, que se voltaram para o universo cultural existente fora da região metropolitana, um exercício tardio e por isso mesmo urgente.

Os Territórios de Identidade baianos foram uma das
inspirações para a formulação da metodologia proposta
para a elaboração do plano estadual de cultura do RJ


Os inúmeros desafios enfrentados pela administração estadual para implementar, eficientemente, programas de governo em todo o território fluminense são, em parte, decorrentes das sucessivas mudanças dos estatutos jurídicos do estado.  É o que afirmam alguns estudos que tratam da matéria. No curso de sua longa história, o Rio de Janeiro exerceu diferentes papéis na administração política do território nacional.  Tal fato, que ajudou a consolidar sua importância em todo o país, uma centralidade em âmbito nacional, acabou também por contribuir com a fragilidade de sua centralidade interna, que ainda se manifesta, por exemplo, nas frágeis relações  institucionais entre a capital, centro do poder, e os outros municípios da região metropolitana e, principalmente, os do interior. 



Alguns estudos já foram
publicados sobre a questão
da Capital X Interior no RJ



O último episódio destas transmutações dos estatutos jurídicos, com impactos ainda evidentes na gestão da cultura fluminense, foi o da fusão, em 1975, do Estado da Guanabara e do Estado do Rio de Janeiro. Historicamente ofuscado pela importância carioca no cenário cultural nacional, o interior fluminense reivindica, desde a fusão, o reconhecimento da importância do seu rico universo cultural, seu quinhão dos recursos públicos existentes e, mais recentemente, sua efetiva inclusão no processo de elaboração de políticas públicas para o setor cultural.

As oito regiões do estado do Rio de Janeiro com a Metropolitana em destaque


No movimento em prol da construção desta agenda para a cultura fluminense, a SEC propôs uma mudança de paradigma, que permitiu no decorrer do ano de 2010 o envolvimento do interior fluminense em todo o processo. Assim procedendo, a atual gestão da secretaria estadual deu importante passo para uma revolução.  Digo isso sem exageros, uma vez que por uma série de fatores ao longo de sua existência, o citado órgão tem sistematicamente priorizado recursos para a zona nobre da região metropolitana, beneficiando em especial o centro e a zona sul da cidade. E todos nós sabemos: não existe política pública sem recursos públicos.
 
Jornais e revistas do interior fluminense deram ampla cobertura
aos Encontros Municipais e Conferências Regionais de Cultura

 


Em 2005, ano em que cheguei para trabalhar na SEC, estava a todo vapor a consolidação de um modelo de produção cultural extremamente dependente da renúncia fiscal.  O próprio Estado tinha virado refém de tal engenharia.  Com parcos recursos próprios, sem capacidade de investimento, e vendo as empresas fazerem a festa com o dinheiro público destinado à cultura, a SEC se esvaziava, limitando-se a ter um papel burocrático, basicamente restrito à aprovação dos projetos submetidos à Lei de Incentivo Fiscal. Tal cenário, se não impedia, limitava em muito as ações efetivas que envolvessem o interior, apesar dos esforços, desejo e comprometimento daqueles que lá trabalhavam.  Durante este período foram realizados vários encontros no interior, promovendo a articulação regional, a exemplo dos Encontros Regionais de Cultura, organizados pela Subsecretaria de Ação Cultural, mas que acabaram por não ter maiores resultados e consequências ante a falta de recursos para ações concretas.  Com este panorama, não havia condições de pensar em um planejamento em longo prazo, e a gestão se limitou a ações isoladas e pontuais.  Era o que dava pra fazer.  



Foto da inauguração de uma Sala popular de Cinema,
iniciativa na época financiado pela renúncia fiscal, ou seja, um
projeto de governo que dependia da aprovação de uma empresa


Mudanças importantes no cenário político e na administração estadual ocorreram e, no final de 2009, as discussões internas com vias à elaboração de um plano estadual de cultura começaram  paulatinamente a ganhar espaço dentro da secretaria estadual de cultura.  Em 2010, beneficiando-se de um contexto favorável provocado pelas ações do MINC em torno da elaboração do Plano Nacional de Cultura e respaldada pelo prestígio da pasta da cultura junto ao atual governador, a secretaria foi à luta. Visitou todos os noventa e dois municípios fluminenses e realizou oito conferências regionais, fazendo algo raro em encontros deste tipo, que colocam frente a frente poder público e sociedade civil: ouviu.  Foi com uma proposta em mãos, mas foi com tempo para ouvir aqueles que se ocupam do fazer cultura em todo o estado e genuinamente esforçou-se para incorporar colocações, sugestões e críticas à metodologia do projeto e ao conteúdo dos relatórios.


Arco-Íris da Cultura: as conferências regionais,
como a de Saquarema, mobilizaram artistas,
gestores públicos, militantes e simpatizantes


A despeito do inegável avanço, tanto no cenário político como na eficiência da gestão da SEC, pensar as regiões culturais continua sendo um grande desafio, a começar pelo fato de que tais regiões, distintamente das esferas municipal e estadual, não existem enquanto entes administrativos.  Políticas de âmbito regional exigem, por esta razão, um esforço contínuo de articulação entre estas duas esferas (estado e regiões). E continuidade, todos sabem, não é o forte do poder público no país.  Neste caso o problema é, em grande parte,  decorrente da inexistência de uma agenda consensual baseada em diagnósticos confiáveis que possibilitem a formulação de um planejamento que contenha propostas em médio e longo prazo para a cultura fluminense.

Para cada um das 8 regiões foi feito um relatório inicial,
chamado de Notas para um Diagnóstico Preliminar

Outro desafio refere-se a falta de consenso no governo estadual em torno da configuração das regiões fluminenses.  O turismo divide de uma maneira, a educação de outra e a cultura busca definir as suas regiões de acordo com a força das tradições e das práticas culturais hoje existentes.  Estas diferenças, apesar de compreensíveis, configuram-se em  um obstáculo a mais para possíveis ações transversais conjuntas de âmbito regional, que poderiam envolver várias secretarias de estado, como por exemplo, no lançamento de editais em parceria, dentre outras possíveis iniciativas que certamente fortaleceriam o processo de construção de uma Política de Estado para a cultura no estado do Rio de janeiro.

A configuração das regiões observada pela Turisrio
difere da proposta em andamento na secretaria de cultura


Ao ter a oportunidade de visitar todo o interior fluminense entre março e setembro de 2010, foi fácil perceber a necessidade de fortalecer a relação institucional entre estado e municípios, como forma de estimular o pensamento coletivo, o de âmbito regional. Neste sentido, destaca-se que a SEC tem procurado articular-se com os municípios a partir de uma proposta concreta e viável de se consolidar em curto prazo, sem cair na tentação de terceirizar esta iniciativa, ou seja, apostando suas fichas em programas com recursos públicos, como o PADEC, e na força da presença física da secretaria em todo o território fluminense, como na estruturação do Sistema Estadual de Museus, nas ações ligadas às superintendências de Artes, Audiovisual, Leitura e Conhecimento, apenas para citar algumas iniciativas do cardápio atual. Assim procedendo, a SEC acabou por estimular a interação com e a integração dos municípios do interior neste processo de construção envolvendo todas as regiões do estado.  


O PADEC viabilizou pela primeira vez na história
um repasse da secretaria estadual às secretarias
municipais de cultura, na ordem de R$ 15 milhões

Apesar do bom início, o sucesso e a própria continuidade desta empreitada que tem dinamizado o tecido cultural fluminense depende do fortalecimento dos órgãos públicos de cultura e da capacidade destes em estabelecer relações institucionais, selando parcerias e aglutinando interesses regionais.  Isso pode ocorrer através, por exemplo, de consórcios, que já ameaçam a pipocar aqui e acolá, ou a partir de outros tipos de parcerias que podem envolver ou não a iniciativa privada. O que não parece possível é a consolidação de um cenário diferente do atual baseando-se apenas em afinidades pessoais daqueles que hoje estão gestores. São inúmeras as ações exitosas no passado que acabaram por sucumbir ao alto grau de instabilidade política e administrativa do setor cultural.  Neste sentido é importante pontuar: os diagnósticos preliminares comprovam que, tanto os órgãos municipais responsáveis pela gestão da cultura, como a própria secretaria de cultura do estado, são carentes de bons quadros compostos de funcionários concursados e de recursos garantidos por lei, condições essenciais à elaboração e gestão de programas estruturais e setoriais de longo prazo.  

Casimiro de Abreu é um exemplo de fortalecimento
institucional que promete dias melhores para a cultura
no município, impulsionando a região e inspirando o estado
 


Ao abraçar a missão de dialogar com todos os 92 municípios fluminenses e enfrentar as dificuldades na articulação de tal amplitude, a estratégia da SEC em mobilizar os municípios a partir de seus interesses coletivos, através das regiões culturais, não apenas revelou-se eficaz, mas também surpreendeu pelos seus resultados imediatos e pela oportunidade de fortalecer a própria SEC em outras frentes de batalha. Ressalto, para começar, a adesão dos municípios, e aqui não me refiro apenas às autoridades e aos órgãos públicos, mas destaco o interesse despertado na sociedade civil (artistas, gestores, imprensa, militantes e muitos simpatizantes), fato que possibilitou a efetiva incorporação do interior  como agente participante de todo este processo.  É importante também salientar que esta nova lógica, que tem permitido a participação do interior na construção desta proposta política, pode ajudar a dar rumos mais coerentes à renovação do Conselho Estadual de Cultura e também tem o potencial de ajudar a pavimentar a estruturação de um novo modelo de gestão, que tem um nome: Sistema Estadual de Cultura.  Finalmente o diálogo frequente com as regiões gera melhores condições para a elaboração e avaliação constante dos diagnósticos, produzindo resultados mais condizentes com a realidade da cultura em todo o estado, algo imprescindível para qualquer gestão. 

Plano = Diagnóstico + Propostas


O processo é longo e há de se ter paciência.  Alguns grupos eventualmente carecem desta virtude, expondo as fissuras e os antagonismos infelizmente existentes entre os interesses da política da cultura e da cultura da política. Tais grupos sempre me incomodaram, mas hoje vejo diferença importante nesta minoria.  Existem aqueles que são militantes da cultura e buscam contribuir com a pauta de uma agenda política e existem os que são os militantes da política e buscam pautar a agenda da cultura.  Tal ambiguidade além de não favorecer o processo de construção, acaba alijando ainda mais o interior, menos mobilizado e articulado politicamente.  Ao pensar em representatividade regional a SEC marca um ponto para esvaziar um pouco o irritante uníssono dos chatonildos de plantão. Enfim,  houve quem entendesse e deixasse de lado diferenças políticas em nome de uma construção suprapartidária, como demonstraram alguns gestores de municípios que não faziam parte da bancada de apoio do governo atual.

 

Movimento Amplo: a proposta mobilizou até
municípios ligados a grupos políticos de oposição

Todo este processo, até onde eu entendo, não intenciona diminuir a importância cultural do município do Rio de Janeiro.  Busca sim, incorporar o interior e a Baixada Fluminense fortalecendo uma agenda política capaz de ser percebida como legítima e representativa por todos aqueles que fazem cultura no estado. Certamente não será de uma hora para outra que lograremos êxito em tudo, como não será da noite para o dia que a cidade do Rio de Janeiro deixará de ser o centro gravitacional que é, capaz de atrair atenções e recursos privados e públicos, muitos destes para cumprir obrigações estabelecidas em lei, asfixiando ainda mais o ainda limitado orçamento da cultura.  Aliás, como ficou claro em todos, digo, todos os 92 Encontros Municipais de Cultura, esta tendência de concentração de recursos na capital do estado se reproduz na relação entre as sedes e os distritos dos outros municípios.  É então plausível imaginar que os avanços iniciais não sejam capazes de abrandar satisfatoriamente a histórica tendência  da centralização no uso de recursos e ações limitadas às áreas centrais dos municípios fluminenses. Mas os primeiros passos são promissores para que esta centralização seja atenuada.
 
Cerca de quatro mil agentes culturais estiveram presentes nos
encontros promovidos pela secretaria estadual de cultura em 2010

Visando firmar os pilares para as mudanças no cenário atual, a SEC deflagrou um processo com base em uma articulação que reuniu à mesa, estado e municípios, com a presença e efetiva participação da sociedade civil, esta ansiosa por avanços concretos. É este o desafio que hoje se apresenta à secretaria estadual, o de corresponder à expectativa criada em todo o estado e levar adiante a construção do Sistema Estadual de Cultura e a elaboração do Plano Estadual de Cultura,  numa janela de oportunidade com data de vencimento. Em 2012, é bom lembrar, os 92 municípios estarão envolvidos em eleições. Não há tempo a perder, pois uma eventual mudança no cenário político do interior  (mudança de gestores e agendas) poderá provocar retrocessos indesejáveis. Não é tarefa fácil nem rápida, a de elaborar esta proposta estruturante e ampla por natureza.  Demanda tempo para ser negociada com os diversos atores de um cenário pra lá de complexo.  Mais tempo será necessário para que este resultado seja negociado e encaminhado à Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, transformando-se provavelmente em um Projeto de Lei, cuja aprovação será determinante para que o Rio de  Janeiro finalmente possa ter um marco legal que garanta os ganhos que todos buscam para a cultura fluminense. 

Os que transitam no cenário garantem: a hora é esta, a de aproveitar o raríssimo alinhamento dos planetas das esferas federal, estadual e municipal.


Um comentário:

  1. 3 pilares sustentam uma sociedade: cultura, educação e saúde. Uma vez que o executivo volta o olhar para esse fundamento social, precisamos que o legislativo entre de vez nesse trabalho de reestruturação, forjando leis que garantam a distribuição ordenada de recursos públicos. Nosso país agoniza, principalmente no interior. Parabéns pela matéria e pelo blog.
    Robson Monteiro.

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